O meu maior medo era perder meus filhos. Não, não necessariamente minhas quatro progênies, mas sim toda a Weingarten. Considerava aquelas pessoas os meus filhos, pessoas que eu deveria cuidar e proteger, zelar pela sua segurança e conduzir todos debaixo das minhas asas a um futuro maior e grandioso. Saber que Thomas saía pelas ruas assassinando pessoas de acordo com o seu julgamento, era algo que me partia o coração. Não concordava com o seu estilo de vida, tinha medo de como ele poderia retornar morto para casa, numa maca e com um guarda vindo me dar as más notícias. Isso era uma possibilidade bastante real.

Mas o que fazer nessa situação? Eu era um pai, mas antes disso eu era um imperador e, vendo sob um ponto de vista cru e frio, ele fazia a coisa certa. Pedófilos, estupradores, sequestradores e pessoas vis eram eliminadas por Thomas, de forma limpa e rápida, incisiva até. Como eu poderia competir com isso? Presos precisavam de provas, de investigações e testemunhos. Os detentos passavam a vida inteira, sendo alimentados e sendo bem cuidados. Por vezes, em casos extremos, havia a sentença de morte – mas isso era o suficiente?

Despertei logo pela manhã com batidas na porta, fazendo-me sair da cama a passos silenciosos e pegar a carta debaixo da porta. Era um pedido de Thomas para que nos encontrássemos na biblioteca, às oito horas. Passei os dedos nos olhos, bocejando e então me dirigindo ao local, porém antes me encontrando com uma gentil senhora responsável pela cozinha, a qual pedi um favor – um café da manhã especial para Thomas e eu na biblioteca. Nesse meio tempo, tomei banho, vesti apenas um robe vermelho de seda e então me dirigi descalço à biblioteca, despreocupado – de qualquer forma, planejava passar o dia inteiro em casa.

A biblioteca do palácio era sublime, para se dizer no mínimo, possuíam estantes recheadas de livros e com escadas de rodas para se ter acesso ao topo, mesas bem distribuídas e alguns globos planetários, com janelas todas abertas fornecendo uma iluminação natural. Podia ouvir os cantos dos pássaros e o cheiro do café da manhã impregnava as minhas narinas. Uma das mesas estava abarrotada de comida e Thomas já me esperava. Como sempre, ele tinha uma expressão séria, de poucas palavras e um tanto quanto curiosa.

— Bom dia, querido — aproximei-me contornando a mesa, beijando o topo da cabeça do rapaz enquanto minhas mãos afagavam seus fios castanhos. Sentei-me em minha cadeira, ao passo em que comecei a me servir, pondo torradas, geleia, café e atum. — O que o traz à biblioteca? Ajuda com alguma pesquisa? — perguntei casualmente.

Thomas parecia bem, ele era muito lindo e isso não havia sido maculado pelos seus serviços de assassino. Preocupava-me a sua vida, mas como seu pai restava-me apenas a opção de aceita-lo, independentemente do que ele quisesse para a sua vida – mesmo que isso fosse a morte.

Thomas parecia diferente assim que eu havia posto os meus olhos nele. A cada dia que se passava, meu primogênito parecia estar mais velho, não num sentido ruim, mas sim de forma positiva: ele parecia mais maduro e inteligente a cada encontro nosso. Saber de seu passatempo como assassino não me agradava e me deixava preocupado, além de bastante decepcionado, entretanto eu precisava lidar com esse meu desagrado e aprender a amá-lo independentemente das suas escolhas. Minha tarefa como pai não era fazê-lo ser o meu fantoche, muito menos ser meu vassalo, sempre me elogiando e me bajulando.

Sua pergunta sobre visões e profecias me fez estreitar os olhos e levar o dedo indicador aos lábios, selando-os enquanto eu o ouvia atentamente. Nunca vi Thomas se interessar por nada que envolvesse magia, vide que seus poderes eram de origens científicas e naturais, portanto, ele nunca havia demonstrado nenhuma vontade em sequer ir em minha biblioteca mágica no meu quarto secreto, o qual eu costumava levar Ravena e por vezes Orion, quando menor. Não sabia se ele realmente queria saber mais sobre o assunto ou se seu interesse era uma tentativa de se aproximar de mim. Mas, pelo o que pude perceber, era um amigo seu. Amigo, hm? Sorri disfarçadamente, logo retirando o dedo do lábio e esfregando as pontas dos dedos, pegando minha xícara e bebendo o café.

— Bem, as profecias são muito complexas, depende muito de quem a teve. Há casos de médiuns que são contatados por espíritos ou forças superiores, recebendo visões específicas sobre algo, ou só ouvindo vozes. Há casos de intuição, onde você sente que não deve ir a determinado lugar onde ocorrerá um acidente, por exemplo. Em alguns casos temos visões bem detalhadas, noutros temos incógnitas e símbolos. Por exemplo: já sonhei com escorpiões me picando e, no fim das contas, eram apenas pessoas que visavam me trair e não um animal peçonhento me picando de verdade. — Dei uma golada no café, as pernas cruzadas, enquanto balançava ritmicamente minha perna esquerda sobre a direita.

O que eu dizia era a mais pura verdade: visões podem nos enganar, prever coisas que acontecerão daqui a segundos, meses, anos ou até mesmo séculos e milênios. Poderes mágicos e mediúnicos envolviam probabilidades complexas, as quais não podíamos prever ou conjecturar.

— Houve um caso, onde previ que ia levar um tombo na sala do trono e o palácio inteiro riria de mim. Depois disso fiquei receoso de me mover em público. Eu tinha oito anos, talvez dez, não me lembro bem, mas enfim; eu fiquei morto de medo da vergonha que isso poderia ocasionar. Semana passada eu levei um tombo na sala do trono e todo mundo riu de mim, inclusive eu mesmo, que sequer me lembrava dessa visão boba da minha infância. Quase sessenta anos para eu levar um tombo. — Expliquei, mas logo me interessando por essa profecia em específico. O que será que havia deixado Thomas tão pensativo?

Haviam poucos videntes em Weingarten. Raramente encontrava alguém com dons proféticos ou com algum tipo de vidência, então a pessoa que meu primogênito havia encontrado era alguém que eu não conhecia. Quem poderia ser?

— Sobre repetições... bem, elas podem ou não serem específicas, mas elas sempre têm um alvo. Por exemplo; durante anos sonhei com todas as pessoas ao meu redor virando poeira, mas no fim era apenas meu pai que se tornou pó. Ele era o alvo das minhas visões, mas eu nunca associei isso. E não, papai não tinha visões, mas eu tenho e eu costumo anotá-las, posso mostrar depois. Geralmente são desenhos, no entanto. — Confessei, lembrando que teria poupá-lo de ver alguns desenhos, no entanto.

Ainda não fazia a mínima ideia do que Thomas estava buscando. Ideias espiralavam em minha mente energicamente, buscando encontrar respostas apropriadas para todas as suas perguntas. O que exatamente ele estava tentando achar? Algum amigo teve uma visão ou recebera uma de alguém? Previram algo sobre ele? Se for o último caso, eu definitivamente teria tido uma visão, pois toda a minha família nunca escapa do radar de meus poderes premonitórios. Podia sentir as suas dúvidas, mesmo que eu estivesse tentando manter-me o mais afastado o possível da sua mente. Porém, eu era o seu pai, pressentia suas emoções mesmo que ele tentasse escondê-las – fazia parte do instinto paterno.

Enquanto comia, Thomas negava o meu convite para ver meu caderno de profecias, o que talvez fosse bastante útil para que ele compreendesse como funcionam as visões – se bem que as regras mudam drasticamente de acordo com o vidente, no meu caso elas vinham como visões específicas, por vezes em símbolos e analogias, mas isso era bastante raro e só em casos especiais. Tentei raciocinar, porém desisti de tentar compreender e simplesmente tomei liberdade para ler sua mente. Não seria nada de errado, somente uma lida rápida, afinal ele atiçara a minha curiosidade. Estreitei os olhos ao ler um pouco da mente dele, porém me atentei mais à sua pergunta, o que me fez alisar meio queixo pensativamente.

— Bem, eu costumo dizer que no mundo sobrenatural as regras mudam de acordo com a pessoa. Para uns, ter determinado poder ou “cargo” muda drasticamente sua vida e afeta todo o tecido da realidade, enquanto para outros isso pode significar simplesmente poder. Uns enlouquecem com um poder, enquanto outros o manipulam e o usam como uma roupa comum. As visões dessa parente de Valentin, que eu conheci, inclusive, Agnes Lancaster, costumavam serem bastante imprevisíveis, porque ela costumava prever coisas do passado e do futuro com muitos detalhes. Até hoje ela nunca errou nenhuma de suas profecias. E sim, elas envolvem mais de uma pessoa, ela já chegou a prever coisas para uma pessoa sendo que ela na verdade falava sobre outra. Ela vê os fatos, mas não as pessoas especificamente, compreende? — expliquei, empolgando-me um pouco ao falar da notória bruxa dos primeiros dias de Weingarten. Lembro-me bem de sua fama, de como todos iam consulta-la e se irritavam com suas previsões que nunca chegavam e nunca eram precisas. Na verdade, elas eram, só que as pessoas não sabiam a quem elas se referiam.

Claro, provavelmente Thomas sacaria logo de uma vez que eu havia visto Valentin em sua mente, porém minha explicação talvez fosse um pouco mais útil do que um acesso de fúria da sua parte.

— Não me olhe com raiva ou desgosto, só fiz juntar as peças. Seu único namorado foi esse rapaz e, até onde sei, você não tem amigos. Claro que falava sobre ele. Bem, conhecendo as visões da Agnes, tem mais chances de a visão ser sobre você do que sobre o rapaz. Ela costumava ser ótima em associações. Por exemplo: se ela previsse algo sobre você encontrar o amor da sua vida na sexta-feira, na verdade ela estava prevendo algo sobre sua irmã ou irmão conhecendo o amor da vida deles numa sexta-feira daqui a cinquenta anos.

Não sabia se isso seria o suficiente, mas revelar todas as cartas ali – que eu havia lido sua mente para obter respostas e ajuda-lo sem o auxílio de milhares de livros ou conversas criptografadas – havia ajudado e muito na obtenção de respostas de Thomas. Esperava que aquilo fosse o suficiente. Não busquei nada específico, apenas vasculhei quem era o rapaz – na verdade, nem precisei procurar muito, afinal ele era o centro das conversas dele, então era como pescar um peixe num tanque de cinco litros, limpo e com um enorme anzol, fácil demais. Eu nunca entrava no subconsciente ou ia muito fundo no oceano da mente de meus filhos, apesar de alguns deles me deixarem curiosos ou darem bons motivos. Mas eu havia prometido a mim mesmo nunca ultrapassar aquelas barreiras.

E eu iria manter essa promessa.

Como sempre, o clima bruscamente se transformava em uma nuvem negra cheia de raios, trovões e relâmpagos, tudo graças ao temperamento abusado e birrento de Thomas, que a cada encontro me passava mais e mais a impressão de que ele era simplesmente incapaz de conversar tranquilamente com qualquer um sem ficar furioso. Com um talher, mexi o café calmamente, me recostando na cadeira tranquilamente e ouvindo todas as suas reclamações, de ouvidos abertos e a mente absorvendo cada palavra proferida por meu primogênito. Sua histeria, ao ponto dele me mandar revirar e fuçar a sua cabeça, era ridícula e exagerada, o que particularmente me deixava frustrado e irritado.

— Sinceramente, fiz isso para poupar inúmeras conversas. Não gosto de comer pelas beiradas e você levaria dias, semanas e até me arrisco a dizer que levaria até mesmo meses para você me revelar tudo o que guarda acerca desse encontro. Só fiz apressar esse processo e coletar o essencial referente ao assunto, Thomas, não há motivos para reclamar e ser tão desmoderado com suas emoções, é infantil demais. — Comentei antes de dar a última golada no café.

Pus-me de pé, frustrado com aquele encontro calamitoso e já me encaminhando para a saída da biblioteca. Meu apetite havia sido perdido e eu não me encontrava mais animado para prosseguir com aquela discussão. Eu nunca havia gostado de discussões, preferia manter-me afastado e, se possível, encerrar elas, portanto cada encontro meu com meu primogênito significava me estressar com suas explosões emocionais. Limitando-se a um assentir polido, saí dali o quanto antes.